quarta-feira, julho 12, 2006

Bodes expiatórios

O papa Bento XVI, em visita a Auschwitz há uns meses, perguntou "onde estava Deus durante o Holocausto". Joseph Ratzinger cometeu um erro teológico crasso. Devemo-nos sim perguntar onde estavamos, onde estavam as mulheres e os homens para deixar que tudo aquilo acontecesse. Passou-se há 70 anos como se passa hoje na Serra Leoa, na Guiné, no Tibete, em Angola. Onde andamos nós?
Porque esse Deus-bode-expiatório-de-todos-os-males é impotente perante os nossos actos, que estamos no mundo. Não arranjemos desculpas para a merda que fazemos ou para os actos de coragem que deixamos de fazer.

quinta-feira, julho 06, 2006

Espionagem industrial

Nos Estados Unidos três pessoas foram detidas por tentar vender segredos da Coca Cola à Pepsi. Por cá ainda ninguém se lembrou de prender a bancada do PSD por tentar vender ideias ao Governo porque a oposição simplesmente não existe.



segunda-feira, julho 03, 2006

Para atirar à cara dos jornalistas

«A imprensa sem alma»

«Cerca de mil e quinhentos «licenciados» em «Comunicação Social» e seus derivados saem, anualmente, de escolas, institutos e universidades onde aquelas coisas se ensinam. Um concentrado de sonhos e ambições, cedo atirado para o desespero de não encontrar emprego.

Saem com deficiente preparação. Não admira: conheço muitos professores daquilo. Desses muitos, todos são medíocres; arrastaram-se, penosamente, pelas redacções de jornais e revistas, e encontraram encosto no «professorado» ou nas assessorias de Imprensa. Bernard Shaw disse, com lúcido sarcasmo: «Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina». O resultado é o que se vê. Com as excepções a confirmar a regra, o jornalismo português não é mau - é péssimo. E as excepções correspondem àqueles e, sobretudo, àquelas, que foram para o ofício movidos pelo fulgor da paixão, a que adicionaram vontade, conhecimento - e a teimosia de fazer diferente.

Há anos, uma precipitada jornalista do «Diário de Notícias» quis saber os motivos que me haviam impelido ao jornalismo profissional. «O espírito de ser útil», respondi. E, também, a circunstância de o meu pai ter fundado jornais («Diário Popular» e «Diário Ilustrado»), e de aos jornais («A Voz» e «O Século», foram o primeiro e o último onde trabalhou) ter consagrado a parte mais estelar da sua vida.

A rapariga ficou surpreendida com a afirmação, e talvez a tomasse como impetuosidade de quem tem por hábito dizer o que pensa. Mais espantada a deixei quando lhe disse que estivera dez anos em «O Século» (de onde fora despedido por motivos políticos) e vinte e três no «Diário Popular», de lá saindo por incompatibilidade total com a deriva do vespertino. «E lá permaneceria, acaso as coisas não se houvessem alterado», disse. E perguntei: «E você?» Logo ela: «Estarei no ‘Diário de Notícias’ até arranjar uma assessoria».

Nasci num lençol de papel impresso. E conheci e trabalhei com o que de melhor existia na Imprensa da época. Quando nomeio os que deram a fisionomia ética e estética a essa componente fundamental da cultura portuguesa, não o faço por nostalgia. É um imperativo moral e uma espécie de reparação ao triste esquecimento a que esses homens foram ostensivamente votados. A memória das Redacções passa pela exigência de se lutar contra o esquecimento, o qual participa de um muito mais vasto projecto ideológico conservador.

Harrison Salisbury, que foi um dos maiores jornalistas ocidentais e uma assinatura de prestígio no «The New York Times», respondeu, certo dia, a um moço que lhe perguntara como poderia ser jornalista. «Percorra a Bronx, vá ao Harlem, caminhe por Queens. Assista a alguns julgamentos. Observe os hospitais públicos. Analise o comportamento social dos sindicatos. Fale com os polícias das esquadras dos bairros. Mas, sobretudo, goste de pessoas». Frases como estas deviam figurar em todas as Redacções. Aqui se contém a essência primeira do jornalismo. E é uma lição de tudo.

Já falei, em crónica anterior, da fúria acrítica e irracional que varre a Imprensa. O Mundial da Alemanha converteu-se na dimensão bufa de uma nova Aljubarrota. «A Bola», fundado pelo tarrafalista Cândido de Oliveira, titulava, na segunda-feira, a primeira página, com esta bizarria: «Heróis da Resistência», saltando, airosamente, sobre o significado profundo da expressão. Tudo é permitido. A razão, o bom senso e o bom gosto sofrem atropelos. O processo de imbecilização do país prossegue impante e impune. Todavia, qual for o resultado, a ressaca vai atirar os portugueses para o grau mais baixo da ciclotimia.

De uma maneira geral, os jornais portugueses são todos iguais, com notícias iguais, títulos semelhantes, precaucionistas, má prosa, vocabulário rudimentar, comentadores sem rasgo, preguiça na pesquisa, carência de criatividade, ausência de originalidade editorial. Os jornalistas não saem das Redacções, servem-se da net e do telefone, de meia dúzia de ideias feitas.

Chega-se ao absurdo de se publicar textos de acontecimentos internacionais, em narrativas compostas na Redacção, mas firmadas como se o jornalista estivesse no local. Há redactores que nunca, jamais, em tempo algum saíram em busca da notícia, ou na procura do desenvolvimento de uma informação dada pelos telejornais. Aparecem, nas primeiras páginas (não se deve dizer «capa», «capa» é de revista; «primeira página» é de jornal), chamadas para factos ocorridos quase vinte e quatro horas antes!

O espaço gasto em inutilidades atinge as raias do abstruso. E os custos de produção são caríssimos, exactamente porque há manifestamente um subaproveitamento das capacidades dos jornalistas. Diariamente, adquiro três (ocasionalmente quatro) jornais. Nos fins-de-semana, sete; quatro dos quais estrangeiros. Faço a comparação. Um desastre. Para nós, é evidente. Depois, a grande falácia da «independência» ideológica. O provincianismo, aqui, só dá para fazer caretas. É defeito o «El Pais» ser, manifestamente, de esquerda moderada; e «El Mundo» abertamente de direita? «The Guardian» defende causas de esquerda, assim como «Le Monde»; e «Le Figaro», de direita. São maus jornais, devido a essas definições? Bem pelo contrário. E outra pergunta: para que servem os «provedores»? São os vigilantes de quê e os curadores de que verdade absoluta ou relativa?

Lastimo ter de dizer isto: que estímulo à inteligência, que provocações à nossa inércia, que propostas indicam esses «comentadores» que enchem, de vacuidades e de necedades, as páginas dos nossos jornais, sobretudo aqueles que se dizem «de referência»?

Onde estão as grandes reportagens, as crónicas, as entrevistas, as notas e os artigos que escapam à vulgaridade e proporcionam, aos leitores, altos momentos de prazer e de reflexão? Onde se debatem as grandes causas e os nobres combates? A quem interessa esta emasculação do jornalismo português?

Faço-lhe, Dilecto, mais algumas perguntas ingénuas: percebeu alguma coisa do que ocorre em Timor? Será verdade que Alkatiri foi armadilhado pelo facto de se opor a uma negociata do petróleo, antagónica dos interesses dos timorenses? As tendências hegemónicas da Austrália, na região, obedecem ao princípio, sempre ambíguo, dos «interesses nacionais», de uma potência que só é grande pela impressionante dimensão do seu território? E quais as relações entre a Austrália e a Indonésia neste conflito?»

Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 3 Julho 2006